Depois de quase sete anos à frente do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, David Santos, de 42 anos, chega ao Museu do Chiado, no coração de Lisboa, com um programa claro: retomar uma linha de inequívoca aposta na criação contemporânea portuguesa — mesma lógica de programação que ao longo de 11 anos fez de Pedro Lapa um director acarinhado pelo meio, mas não por isso menos polémico. É uma declaração de força, sobretudo num momento de crise em que o sector da Cultura parece capitular.
Não há forma de começar com uma pergunta especialmente optimista: nos últimos meses a Cultura tem visto retirarem-se muitos dos seus nomes de topo, incluindo a Directora-Geral do Património Cultural, Isabel Cordeiro, e o anterior director do Chiado, Paulo Henriques, que abandonou funções dizendo ser impossível um museu nacional viver na dependência total de eventuais mecenas. Com que expectativas se assume este cargo num momento como o actual?
Com a convicção de que é sempre possível contornar as dificuldades. Quando assumi o meu projecto de candidatura estava plenamente consciente das dificuldades que o país e o sector atravessam, mas acredito que há sempre possibilidade de encontrar vias alternativas. Por exemplo, de mecenato, de captação de fundos para museus como o Chiado manterem activas as suas missões, não só a nível nacional como internacional. Isto pode parecer contraditório com as declarações do meu antecessor, mas tudo depende também da perspectiva com que encaramos as circunstâncias e as condições que nos são apresentadas. Deste ponto de vista, não me candidatei iludido — candidatei-me com a plena consciência de que estaria a abraçar um projecto com um historial de dificuldades e com a convicção de que posso contribuir para superar alguns desses problemas quase crónicos.
Com que projecto se candidatou? Ou seja, que Museu do Chiado propôs à tutela?
Um museu que sublinhe a sua nomenclatura — Museu Nacional de Arte Contemporânea —, investigando e dando visibilidade à arte portuguesa contemporânea. É o dado fundamental da minha candidatura: apresentar uma programação mais ligada ao momento actual, à arte emergente.
Diferentes agentes têm diferentes entendimentos do que quer dizer emergente em contexto museológico. Quão emergente?
Um museu situado no Chiado, a paredes meias com a Faculdade de Belas Artes de Lisboa, tem obrigação de manter um contacto estreito com a prática artista contemporânea e não ter receio de trabalhar com os artistas que estão num plano de revelação inicial. Não quer dizer que não vá trabalhar com artistas com projectos mais consolidados, já de algumas décadas, mas sem medo de trabalhar também com os emergentes. Um museu com esta designação tem que assumir de uma vez por todas um rasgo de programação mais atenta à nossa contemporaneidade. Não se substituindo nem às galerias — que têm um trabalho completamente distinto — nem aos lugares de apresentação mais alternativos. Cada coisa tem os seus códigos, as suas simbólicas e, naturalmente, o seu discurso.
Quando deixou o museu, em 2009, Pedro Lapa, que seguiu essa mesma linha programática, disse que um dos principais problemas dos museus era a ausência de definição de uma política por parte da tutela. Ao escolhe-lo, sente que a tutela está a caucionar o seu objectivo?
Tinha todos os argumentos em cima da mesa. Estou convicto que não houve dúvidas. Acaba por ser uma aposta da tutela.
Como funcionará a programação anual? Quantas exposições temporárias estão previstas e com que tipo de articulação com a colecção do museu, que muitos defendem dever estar exposta em permanência?
Pois… É um dilema tão histórico quanto a própria fundação do museu… O museu não tem espaço para manter uma programação de temporárias condignas e, ao mesmo tempo, mostrar uma permanente. O espaço não é suficiente. E isso é absolutamente consensual. Não há nenhum ex-director, nenhum técnico conservador, ninguém na cultura museológica, na crítica de arte, ninguém que não esteja de acordo com esta perspectiva. O Museu Nacional de Arte Contemporânea é um museu com um espaço que não está de acordo com a sua dimensão nacional nem com a riqueza da sua colecção. E enquanto não se resolver esse problema, cabe aos directores encontrar soluções mais ou menos razoáveis de superar o problema. Eu não estou distante da ideia de uma exposição permanente. Desde que tenhamos condições para apresentar condignamente uma permanente representativa da total amplitude da colecção. Também é umas das funções do museu, mas é possível apenas num quadro de espaço expositivo que marque uma posição concreta e de qualidade, da qual não abdico. Como não abdicarei do incremento de uma programação muito mais virada para a contemporaneidade. Se ao longo do tempo em que aqui estiver puder ter uma permanente que venha até à contemporaneidade — que não é o caso da actual, que vai apenas até 1975 – vou procurar que se criem as condições para termos uma permanente — que será outra, daqui a algum tempo. Se isso não for possível, então é provável que a partir de 2015 o espaço dedicado à exposição permanente dê lugar a exposições temporárias. Portanto, se for necessário, sacrificarei a ideia da exposição permanente.
O que seria o ideal para este museu, em termos de espaço?
Pelo menos o dobro. Nesse caso, teria uma exposição permanente e temporárias. O que seria também dar ao museu o protagonismo que ele merece na agenda cultural museológica do país, que nunca perdeu mas que, nos últimos anos, por razões várias, diminuiu.
Essa agenda conta hoje com uma rede de espaços dedicados à arte contemporânea que não existia em Lisboa nem na altura da fundação deste museu, em 1911, nem no ano da sua reabertura, em 1994, depois do incêndio do Chiado. O Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, a Culturgest, o Museu Berardo, galerias, espaços independentes… Nesse contexto, o que deve constituir hoje a matriz identitária do Museu do Chiado?
Na minha opinião, o Museu Nacional de Arte Contemporânea deve trabalhar sobretudo arte portuguesa. Precisamente como contraponto, por exemplo, ao Museu Berardo que, tendo em conta a sua colecção, pode e deve trabalhar sobretudo a arte internacional. Não quer dizer que a programação do Chiado não tenha exposições internacionais. Vamos ter uma já em 2015. Simplesmente, elas têm que dialogar com a arte portuguesa. Nesse registo, a programação que quero fazer no museu incluirá certamente arte internacional. No entanto, a matriz da missão do Chiado, tal como da sua colecção, é a arte portuguesa. Uma missão que os outros [museus] não cumprem. O CAM aproxima-se um pouco — é o [espaço] que mais se aproxima da missão deste museu.
Mas, precisamente ao contrário do CAM, o Chiado tem uma colecção que recua até 1850 e esse foi sempre um dos argumentos contra a retirada da exposição permanente: a ideia do museu onde ver arte portuguesa de finais do século XIX e princípios do século XX…
Sou sensível a esse argumento. Não quero é confinar a missão e objectivos do museu a essa representação histórica da evolução da arte portuguesa de 1850 à actualidade. Até porque acho que o Museu do Chiado tem condições para manter uma dinâmica programática de atenção à arte contemporânea que conviva razoavelmente com uma exposição permanente. O que procurarei sempre é criar as condições para que esses dois paradigmas convivam.
Explicou que para isso é necessária a ampliação. No entanto, desde a fundação do museu que os directores se sentam neste gabinete com essa esperança…
É verdade. Mas neste momento há um dossier a ser trabalhado na Secretaria de Estado da Cultura e na DGPC que dá crédito a esta esperança.
Quer dizer que já reuniu com o secretário de Estado?
Sim.
E o que discutiram?
Diversos aspectos da vida do museu. Não vou entrar em detalhes, mas tenho esperança de que alguns dos problemas possam em breve ter um outro caminho.
Sentiu-se tranquilizado também em relação a orçamentos? Já sabe qual vai ser o seu orçamento?
Sim. Mas não posso adiantar valores. O que posso é dizer que estamos muito próximos de fechar uma nova parceria de mecenato — a tal alternativa às dificuldades económicas do Estado — que vem assegurar, nos próximos anos, uma crescente dignificação da nossa programação. Não posso adiantar muito mais, mas posso garantir que estamos a pouco tempo de revelar esse novo acordo, que vem alinhar com o nosso actual parceiro, o Millenium BCP.
Qual é o valor da contribuição anual do Millenium?
Não posso dizer. No entanto, tem sido absolutamente determinante nos últimos anos para a persecução da missão do museu, absolutamente fundamental. Com a nova parceria o museu fica com mais condições. Isto vem, de algum modo, diminuir a dependência do museu do Orçamento do Estado.
A lógica não deveria ser somar, em vez de substituir?
Continuamos a somar. O Estado continua a projectar aquilo que pode no orçamento do museu. Só que, se eu chego à conclusão — e creio que não é difícil — que isso não é suficiente para cumprir a missão, só temos que trabalhar para encontrar soluções alternativas. A situação não é exclusiva de Portugal. Todos os grandes museus europeus com tutela do Estado, seja em Espanha, França ou Inglaterra, trabalham muito mais com o apoio que lhes vem dos privados do que com o que vem do Estado. E desde finais dos anos 1990 as instituições museológicas portuguesas têm trabalhado razoavelmente com privados. É o caso do Museu Nacional de Arte Antiga. Isso tem permitido equilibrar e dar seguimento a projectos. Não tem que ser complexo nem levantar dúvidas. E nem todos os sinais são tão negativos quanto poderiam numa situação como a actual. Acredito que um museu como o Chiado tem condições para evoluir a nível de programação num trabalho mais próximo com mecenas e procurando encontrar fundos que permitam não só cumprir a sua missão como ajudar os mecenas a perceber que esta é uma aposta ganha, com retorno a nível da imagem da sua marca. Não podemos estar à espera de ter aquilo que sabemos que não vamos ter da parte do Estado. Não quer dizer que estejamos a trabalhar contra a tutela. Trabalhamos com a tutela no sentido de desenvolver uma política mecenática. O património, apesar de estar à guarda do Estado, é de todos os portugueses. E não só dos portugueses: de todos. Não podemos olhar para o Estado como um responsável total. Tem responsabilidades. Tem que cumprir com as suas obrigações mínimas. Mas, não há dúvidas de que evoluímos há já muitos anos para uma situação de partilhar responsabilidades na tarefa de preservar, estudar e divulgar o nosso património. A tarefa não é do Estado — é de todos nós. E as empresas também estão a interiorizar que têm responsabilidades perante aquilo que considerámos digno de ser preservado.
Fonte: Público